É simplesmente uma violência à sensatez o que faz a mídia televisiva nesses dias de Fórum Social Mundial (FSM) em Belém do Pará e de Fórum Mundial Econômico em Davos. Como me frustrei frente à expectativa de ter ido a Belém, decidi estabelecer relativa vigilância especialmente quanto à cobertura da mídia televisiva em relação ao evento no norte do Brasil. Apenas agreguei frustração sobre frustração.
Noam Chomsky nos conta que a primeira investida midiática visando a introjeção de valores e a produção de consensos alienantes no povo se deu em meio ao governo Woodrow Wilson, nos Estados Unidos. Diz Chomsky que a sociedade americana, à época marcada pelo pacifismo e sem ver razões para a intromissão de seu país na Primeira Guerra mundial, teria sido forjada por meio da propaganda governamental a assumir uma postura decididamente beligerante e anti-germânica.
O caso da mídia televisiva brasileira é semelhante. A ocultação das atividades do FSM por parte dela é somente mais um artifício ideológico cujo fim é manter no povo o consenso da passividade. Assim, seguimos vivendo como se essa realidade cruel e excludente na qual vivemos fosse natural, e como se ela fosse o produto de forças que estão além de nossa ação transformadora.
A "destra" mídia televisiva no Brasil prefere oferecer maior espaço à fatídica e insossa reunião de Davos para incutir na massa o devaneio de que é possível dar continuidade a um modelo econômico culpado por vitimar dois terços da população mundial. Henrique Dussell havia dito na última edição do FSM, que estamos assistindo ao último estertor de um sistema fundado em bases mancas. É verdade. Certamente Dussell estava se referindo ao pressuposto arrogante que alimenta as ações do mercado mundial globalizado neoliberal, de que vivemos num planeta de recursos ilimitados.
Não obstante, a tevê trata a reunião de Davos com a expectativa de que é possível rearranjar o falido mercado neoliberal. Realça a falta da pompa de anos anteriores, sobretudo a ausência de grandes celebridades da cultura atual, mas não se aprofunda criticamente numa reflexão sobre os porquês disso. Menciona descarada e sarcasticamente a voracidade consumista dos chineses ali presentes, e se contenta em resenhar os fatos como quem não vê nada grave diante de si, mas somente uma enxaqueca que será curada com a engenhosidade dos sacerdotes do capital.
Sobretudo a Rede Globo.
Por outro lado, o evento em Belém permanece propositalmente negado aos milhões de telespectadores brasileiros. Os diminutos flashes da tevê sequer chegam a divulgar a divisa do FSM: Outro mundo é possível.
Sim! O que o FSM vem alardeando há oito anos nada mais é que o princípio evangélico de que não se remenda pedaço de pano novo em colcha velha, e nem se põe vinho novo em vasos velhos. Se as Igrejas Cristãs teimam em não compreender que princípios evangélicos como esses não devem ficar estritamente reféns da interpretação tipicamente religiosa, os Movimentos Sociais e as articulações da esquerda mundial tomam a voz e falam em seu lugar. Se as Igrejas Cristãs não conseguem enxergar que a grande idolatria que se pratica hoje é a dirigida ao deus-mercado, ao custo da despersonalização, da invisibilidade e da mutilação de dois terços da população mundial, esses movimentos tomam a dianteira e fazem-no em seu lugar.
O FSM se constitui, dessa forma, num grito e numa articulação coletiva de quem não quer pôr remendo em pano velho. E aqui, a despeito da vexatória vista grossa que faz a mídia televisiva do Brasil, é preciso perceber que as razões para se ter esperança são muito maiores. Porque aí, outra vez em consonância com o evangelho, se crê que a esperança é um fermento que vai levedando a massa. Edgar Morin dizia que as grandes revoluções na história, em diversos domínios (político, cultural e também religioso), tiveram início na preleção pessoal de uma única pessoa. O FSM de Belém recebe cerca de oitenta mil pessoas. É um número pequeno. Mas deve ser pensado em termos de representatividade. É uma demonstração do que vem ocorrendo em variados cantos do mundo em termos de esperança utópica e de inconformidade com o presente estado de coisas.
O evento de Belém, como os demais encontros do FSM, não objetiva o fim do mercado mundial globalizado. O mercado é um dos muitos aparatos artificiais e um dos maiores construtos culturais de que se tem conhecimento. Dele decorre a sobrevivência direta de considerável parcela da humanidade. O que se objetiva, portanto, é que se relativize esse mercado, que peca, sobretudo, por produzir não em função dos interesses humanos, mas em função das demandas e necessidades exclusivas de seus próprios financiadores. Ademais, peca por manter as escandalosas relações assimétricas e neocoloniais entre países ricos e pobres, proporcionando a esses últimos a permanência crônica na condição de emergentes. Nas últimas duas décadas o grande fetiche neoliberal que vem sendo perseguido tenazmente é a construção de um sistema de relações econômicas que prescinda das intervenções estatais. Bem próxima a nós, latino-americanos, a cogitação da ALCA constitui-se exemplo eloqüente dessa hybris neoliberal.
O FSM deseja alardear também que é possível outra economia, sobretudo uma economia que seja marcada pela solidariedade. Como um exemplo, uma economia solidária não pode se resignar ante a realidade do latifúndio. A qualquer observador mais atento salta aos olhos o fato de que o latifúndio e a monocultura são sempre terríveis agressões ao homem e à natureza. O caso alagoano é dos mais conhecidos - e negligenciados - do Brasil. Uma economia solidária não pode conviver, como aqui se convive, com o fato de que apenas 24 famílias possuam 70% das terras agricultáveis do Estado.
Essa expressão - economia solidária - esconde a amplitude de sua proposta. Quer ser solidária, em primeiro lugar, com os pobres. Além disso, quer ser solidária com a natureza, sobretudo quando se trata de estabelecer relações ambientais que objetivem a produção de uma sociedade sustentável. Por fim, quer ser solidária com as futuras gerações, o que está vinculado especialmente com a questão ambiental. Deseja-se aí produzir em função das reais necessidades humanas e coletivas. Além disso, deseja-se aí romper com o sistema piramidal e concentrador da renda e dos meios de produção, criando uma atmosfera cooperativista que permeie todo o processo produtivo. As experiências que se têm feito em todo Brasil - não sem muita luta e por vezes sangue derramado - têm se mostrado muito profícuas.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, foi recebida entre os setores mais reacionários da política e da economia mundial (e também entre boa parte da intelectualidade) como o fim das utopias inspiradas de alguma maneira pelo marxismo. Muitos viram ali a "pá de cal" na aventura esquerdista. Boaventura de Souza Santos chega a dizer que o neoliberalismo ganharia ares de objetividade, se confundindo com a própria realidade. Mas o funeral da esperança é algo sempre inconcluso! O FSM quer ser uma grande amostra disso.
Se for para transformarmos em objetividade qualquer arranjo sócio-político-econômico humano, que façamos com aquele que melhor distribua entre mulheres e homens o produto de sua atividade laboral. Façamos com aquele que melhor dignifique as pessoas e não as deixe em estado de invisibilidade. Façamos com aquele que melhor cuide do planeta, fonte de toda riqueza que o homem frui. Façamos com aquele que dê vez e voz aos pobres, para que superem sua posição de oprimidos. O FSM só existe ainda porque se crê que tais coisas são possíveis. E porque seus pares trabalham com a melhor acepção do vocábulo utopia - um lugar que não existe de fato, mas já existe no coração.
Não fui a Belém, mas, no fundo, de alguma forma me sinto como se estivesse lá. E não tem Rede Globo que prive dessa experiência a quem se deixou encandear pela utopia!
Nenhum comentário:
Postar um comentário