terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Um discurso denunciador indignado

"Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!” Mt 23,37.

Sentando no templo de Jerusalém, Jesus pronuncia um indignado discurso, verdadeiro libelo contra os fariseus e escribas, autoridades políticas e religiosas, das mais respeitadas entre o povo. O discurso é feito na presença dos mesmos, em estilo profético, a partir de uma sucessão de “ais”.

Somente para comparar, os “ais” de Isaías, capítulo seis, são na terceira pessoa, aqui a confrontação é direita, verdadeira denúncia não contra um fariseu em particular, mas contra todo o grupo e todo o sistema farisaico.

O discurso é continuidade dos atos proféticos simbólicos. Ocupado o templo, símbolo de espaço e tempo sagrado (o mais sagrado dos espaços e dos tempos – a palavra “templo” vem da mesma raiz de “tempo”), instaurada a misericórdia como característica sagrada, na cura de cegos e coxos, o profeta Jesus de Nazaré começa o julgamento dos líderes nacionais com um forte pronunciamento de acusação.

A acusação parece fundamentalmente religiosa e toca no ponto mais sensível da teologia vigente: a idolatria. Essa atitude tem conseqüências econômicas e políticas, reforça a exploração tributária e legitima a violência estrutural, onde pobres, como as viúvas, e cidadãos livres, como os profetas, são sempre as vítimas principais.


O seqüestro dos símbolos sagrados – Mt 23, 1-12

Os escribas e fariseus sentaram-se a força na cadeira de Moisés, amam a adoração popular e gostam de serem considerados mestres, pais ou guias. Para Jesus, isso é atitude de usurpação do reservado e reivindicado por Deus, seqüestro de símbolos sagrados, o que é idolatria.

São perfeitos no discurso, mas lamentáveis na prática, cultivam a própria imagem de modo ególatra, estabelecendo uma cultura de privilégios que desfaz a fraternidade e igualdade de todos.

Jesus tem uma compreensão radical do sistema de titulação e de atribuição de méritos: ele não sintoniza com a idéia da igualdade de irmãos no Reino de Deus. Entre irmãos não há mestres, pais ou guias. Atitudes individualistas, elitistas e paternalistas não constroem comunidade, mas causam cisões estruturais permanentes nos grupos.

Querer ser chamado de mestre é egolatria e chamar outro de pai é idolatria. Ter um só Deus e um só Cristo é cultivar relações de mutualidade, vivendo-se em comunidade e deixando-se guiar como uma criança apenas pelo Cristo.


A sacralização da exploração econômica – Mt 23,13-24

O conjunto de textos começa com surpreendentes e gravíssimas asseverações sobre a religiosidade dos fariseus. Os fariseus e os seus escribas, por mais que estudem, não entendem do Reino de Deus, do modo de Deus agir, e ainda querem proibir os outros de entenderem.

Ainda mais, têm a mania de desrespeitar a religiosidade de outros povos, “rodeiam o mar para fazer um prosélito”, sem perceber que o problema é a sua própria religiosidade. Dizendo com outras palavras, Jesus afirma que a religião dos fariseus é duas vezes pior do que a religião dos pagãos.

Essa religiosidade danosa se desenvolve através de motivações econômicas suspeitas, devora a casa das viúvas, e de uma absoluta inversão de valores: a oferta do altar e o ouro do santuário seriam mais sagrados do que o altar e o santuário – o que é um contra-senso.

Uma religiosidade que defende a tributação minuciosa, da hortelã, do endro e do cominho, que prejudica apenas o pequeno camponês, sem o igual cuidado com os fundamentos de qualquer tributação: a justiça e a misericórdia.


Além da violência simbólica – Mt 23,25-36

Através das metáforas sobre “fora” e “dentro”, “exterior” e “interior”, Jesus ataca o sistema de “pureza” e “impureza” que norteia a maioria das ações de toda a sociedade. Pureza e impureza são noções interiores e não exteriores. Os fariseus não tentam mudar a raiz das coisas, mas apenas a folhagem, o que não produz nenhuma mudança real.

A acusação é de violência, que não fica apenas na região dos símbolos, mas redunda em práticas assassinas. Por mais que se adornem túmulos e se caiem sepulcros, a morte estará presente no interior da estrutura, e a violência aparecerá, apesar das declarações de inocência.

A indignação vai ao paroxismo, os fariseus são chamados de cobras e filhos de cobras venenosas. A família é reprodutora da violência e os filhos dos assassinos vão continuar sendo assassinos de profetas. O preconceito, a discriminação, a religião do elitismo e do poder político e econômico, são aprendidos dentro de casa.


O veredicto final – Mt 23,37-39

O final do discurso é de uma beleza pungente. Há uma repentina quebra de tonalidade, depois da explosão irada. Lamento doloso de fêmea que deseja proteger filhotes que não querem ser protegidos. A indignação irada é o outro lado da misericórdia frustrada.

Talvez, toda crítica deva vir sempre de uma atitude de misericórdia, mesmo que a forma seja irada. Atos de amor nem sempre são doces. As atitudes e seus objetivos não podem ser medidos pela veemência das palavras, pelas explosões de ira, ou pela contundência da crítica.

O texto passa da ira à ternura, mas está todo envolto em intensidade e paixão. Talvez a vida não deva exigir de nós menos do que isso: essa mistura de crítica contundente e de ternura apaixonada.

Feira de Santana, 3 de dezembro de 2008.

O autor é Marcos Monteiro, um dos pastores da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Ele faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. Mestre em Filosofia, é assessor de pesquisa do CEPESC, vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King e coordenador do Portal da Vida.